segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Intimidade

No mais, ela tem seu comportamento perpendicular. Acho que para não acordar os pássaros matinais, ela sussurra em bemol "Tá acordado? Eu quero fazer amor". Eu juro, ela diz assim. Como se não soasse clichê. Às vezes ela até diz que os clichês são invenções, só existem em hipóteses sonhadas por cabeças mesquinhas. Ela diz assim "fazer amor". E reforça "Estou com vontade". Ela não vai descansar.
Tenho dormido pouco, ando cansado. Ela tem estado tão down ultimamente. Eu negaceio de bruços, ela com o queixo na minha omoplata esquerda, a franja escura cobrindo os olhos, deixando à mostra os lábios rubros e insatisfeitos, o hálito de uma noite quase inteira sem dormir. Requer resposta. Meio zonzo, não consigo lembrar a noite passada. Só uns fragmentos de pizza gelada pelas três, encostados na pia e desejando mal a alguém. Seu pé esquerdo fora da sandália na minha coxa direita, pedindo apertões. As unhas horríveis de bordô.
Fachos de luz entram morbidamente no quarto. São umas cinco, eu calculo. Abro os olhos, ela está ali, impaciente. "Você quer também?", diz. Eu solto um muxoxo. Temos andado tão perdidos da cidade nesse último mês. Ficado muito de cama. Dúvidas e medos, a vida querendo levar, o vizinho que faz demasiados ruídos, problemáticas que saltam quando estão preenchidas as coisas do coração. Só nos encontramos um no outro. Eu a abraço. Não é suficiente. Não tenho dado tudo o que ela quer, quando ela sabe o que quer. Vamos dormir só mais uns minutos. Ela me chuta.
É o jeito, o cheiro, o modo de vestir, como caminha, como olha, como para. Não sei. Eu amo. Ela retribui. Não há outros motivos pra estacionar se não for nesses termos, com esses votos e afirmações diárias. "Te amo, sim. Só que de vez em quando me esqueço", falou ela, numa briga da semana passada. Ela enche a boca pra dizer bom dia, antes mesmo do dia, que pelo visto acordou melancólico, mais uma vez. Não estou todo confortável, mas tudo bem, agora estou acordado e de acordo. Ela lambe o topo, sem os dentes, e me olha, "e aí?" Ela me convence. Pronto, sinto tesão.
"Eu aceito o que você tem de pior porque preciso do que você tem de melhor", eu falei, na mesma discussão. São flashes que me assombram enquanto ela tem os próprios pés próximos à cabeça. Ela não pronuncia palavras como "sexo" ou "tesão". Há um resquício de ingenuidade romântica ali, como fosse uma virgem (...)
Fiz um vídeo esses dias. Ela usa óculos de sol e cumprimenta um cachorro sarnento cujo dono é a calçada. Ele recebe a carícia na molera cerrando um pouco os olhos, os pelos negros eriçados e a língua de fora em agradecimento. Quis levá-lo, neguei, não caberia, pense bem (...) Me senti muito mal e uns dias a odiei por isso. Às vezes ela consegue. Me deixar puto de raiva. Aí conto até dez e todos esses anos interruptos juntos. Ela pede pra virar e rebola um pouco, exalando o cheiro agridoce da pele amanhecida.
Não há nenhuma novidade, mas ainda é excitante. Pode ser que seja. Amor. Agora sim... Lembro mais coisas sobre ontem. Ela disse séria "tenho uma pergunta pra te fazer" e eu "não aqui, vamos chegar em casa". Passei a festa recapitulando todas as besteiras que fiz de errado e imaginando como ela ficou sabendo. Não consigo lembrar, ou ela não fez pergunta alguma. Desistiu, vai ver. Medo, talvez. Tenho um arrepio de alívio. Ela geme à capela, tímida e meio triste.
Ela quer voltar à posição inicial. Às vezes detesto suas indecisões, mas agora não, tudo tem hora... Ela me pede pra fazer de conta que essa é a última vez... Porque o mundo vai acabar ou ela vai morrer ou me abandonar, não sabe, só sabe que quer uma coisa intensa. Ela quer "fazer amor" loucamente antes do sol voltar, porque há algo que grita entre seus seios, por dentro, e não descobre o que é. "Me fode".
Não sei que horas são, mas sei que não é para educações ou romances. Ela só quer sentir algo mais forte que essa agonia que permanece. Essa dor. Mas nem sempre chegamos lá. Nem com segredos de liquidificador. Não é o fim. De nada, do mundo, da gente, você não vai morrer, não primeiro. Os pássaros piam em desjejum. Digo que amo e ela chora cheia de mistérios. Circundo o umbigo com dedo, movimentos centrífugos a adormecem feito um anjo bastardo...


Gabito Nunes

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